Memórias do Moxotó

22 04 2010

Dizem das pessoas que não querem crescer, que essas sofrem da síndrome do Peter Pan, personagem do escritor J. M. Barrie, que tinha como trunfo heróico a eternidade do estado infantil, condição esta que não o impedia de correr grandes perigos, nem tão pouco o livrou de contrair um temido arquiinimigo, o Capitão Gancho, que se não contasse com eufemismos cinematográficos, elencaria listas de personagens de terror.

Próximos àqueles que se recusam a crescer, temos os que correm em direção à vida adulta – com tamanha pressa e desespero – que acabam por perderem-se em meio a labirintos de imaturidade e alcançam a linha de chegada cansados, combalidos e despreparados no enfrentamento das agruras do mundo feito, e, como borboleta que tem antecipada sua saída do casulo, voam baixo, tombam e sucumbem. 

Na impossibilidade de manterem-se sempre crianças ou cedo demais tornarem-se sujeitos da própria vida, há pessoas que preferem congregar estas duas fases da natureza por toda existência, para isso se utilizam da memória como fio condutor, que liga tudo a tudo, e jamais se perdem das meninices e nem se transformam em homens brutos e desguarnecidos de afetos.

A pesquisadora Priscilla Quirino é uma dessas, que escolheu o norte da memória e quis por toda vida contar estórias que viveu e as que só ouviu falar. Quando criança, menina curiosa do sertão do Moxotó, na cidade de Arcoverde – PE, se encantou com a vida retratada na literatura popular. Tornou-se, então, amante dos cordéis e desbravadora de mundos imaginários.

Na adolescência, se interessou pela história de luta, resistência e esperança da Comunidade de Canudos e o beato Antônio Conselheiro, mas foi pelo profeta da cidade de Altinho, Meu Rei, que Priscilla, munida da verve sebastianista fomentada na infância, resolveu se debruçar. Dedicou-se ao estudo dos movimentos messiânico-milenaristas representado em sua pesquisa por Cícero José de Farias (Meu Rei) e sua comunidade religiosa (Fazenda Porto Seguro) na Serra dos Breus e a todos presenteia com seus achados históricos.

Confira abaixo a entrevista de Priscilla ao Museu de Arte Popular – MAP e aproveite para conhecê-la logo mais, no terceiro encontro da série Diálogos…, na Livraria Cultura, às 19:00 horas. Esperamos você!
 

  1. Você afirma em seu artigo “O profeta pernambucano de Deus: Meu Rei e a Construção do Paraíso”, que o messianismo pode ser encontrado em quase todas as religiões da humanidade e explica isso pela esperança por parte de indivíduos de todas as épocas e sociedades no advento de um mundo melhor. Sendo assim, qual seria a definição de messianismo em que se baseia sua pesquisa? Poderíamos entender o messianismo como arquétipo fundado no mito do herói (Carl G. Jung) de um indivíduo que possuidor de um carisma (Max weber) surgiria em épocas de complicações políticas e sociais a fim de restabelecer a ordem?

Quando falamos em movimento messiânico nos referimos ao complexo religioso composto pela crença messiânica – a esperança que indivíduos ou grupos de indivíduos têm de que o estado de coisas existentes propenda a sofrer uma transformação inevitável, uma renovação radical, ou simplesmente a extinção de uma vez por todas do mundo profano – e pelo líder carismático, seja ele profeta ou messias.

Pode ainda o movimento messiânico ser também de natureza milenarista, mas somente quando envolve a crença coletiva no advento de uma era de beatitude e liberdade (o Reino de Deus) para a humanidade, com a duração de mil anos.

Quando estudamos o sagrado, aludimos ao ponto em que o humano e o divino se encontram. Na comunidade de Meu Rei, o sagrado é subsumido pelo divino, que se imanentiza sem, contudo, abdicar de sua transcendência. Esse evento se cristaliza a partir da experiência humana do divino quando este trava relações com os interlocutores de sua escolha terminando por personificar-se neste.

Essa objetivação do divino na História inicia o homem à ação, levando-o em uma caminhada messiânico-milenar ao mesmo tempo em que a organização de um novus ordo rerum se faz necessária com o estabelecimento de um tempo e espaço sagrado.

2. Pode-se dizer que o messianismo surge com grande força no judaísmo, na citação do profeta Isaías, no entanto, tem-se conhecimento destas idéias junto aos seguidores de Zoroastro na Pérsia. Quais os comentários que podem ser feitos a partir destes fatos?

Em um tempo na qual os hindus védicos ainda imaginavam que o mundo estivesse em eterno equilíbrio, surgiu entre os iranianos uma concepção totalmente nova do tempo e das perspectivas da humanidade, graças ao profeta Zaratustra (mais conhecido pelo nome grego de Zoroastro), que veio a considerar toda a existência como a gradativa atualização de um plano divino. Também previu a derradeira conclusão deste plano, uma gloriosa consumação em que as coisas alcançariam a perfeição de uma vez por todas

Segundo a tradição zoroastriana, o profeta teria vivido 258 anos de Alexandre, o que o situaria em meados do século VI a.C.

Único entre os fundadores das grandes religiões, Zoroastro começou como sacerdote de uma religião mais antiga, a religião tradicional dos iranianos. No entanto, se sua mente era impregnada por doutrinas antiguíssimas, ele possuía um espírito audaz e original.

Segundo a tradição, a partir dos vinte anos de idade Zoroastro levou uma vida de peregrino, visitando visionários e videntes. A experiência e realizações de Zoroastro seriam únicas; em algum momento, teve iluminações nas quais viu e ouviu o grande deus Ahura Mazda – o Senhor da Sabedoria -, circundado por outras seis figuras radiantes. Deste momento em diante, sentiu-se como o profeta escolhido pelos deuses para difundir uma fé religiosa que diferia bastante da fé tradicional.

Apesar de nunca ter tido o objetivo de renegar a religião de seus antepassados, Zoroastro faz modificações reformulando-a, o que causou descontentamento no clero instituído. Como comumente acontece na História – basta tomar Jesus e Maomé como exemplos – Zoroastro não conseguiu se estabelecer como profeta na região onde fora criado; assim muda-se para a corte de príncipe Vishtaspa onde encontra um lar para o resto da vida.

Zoroastro é o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo específico de profeta – os chamados “milenaristas” – e as experiências que determinaram o conteúdo de seus ensinamentos também parecem ter sido típicas. Os profetas que prometem uma transformação total da existência, uma perfeição plena do mundo, com freqüência baseiam sua inspiração original no espetáculo não apenas do sofrimento, mas de um tipo específico de sofrimento: aquele ocasionado pela destruição de um antigo modo de vida, com suas certezas e salvaguardas familiares. E, aparentemente, Zoroastro era um profeta assim.

Zoroastro inspirou-se num antigo e potente mito do combate para criar outro mito do combate ainda mais potente. Sua criação sobrevive até hoje: o próprio âmago do Zoroastrismo sempre foi um mito do combate – na verdade até mesmo o próprio guerreiro divino está presente, sob a forma do redentor futuro, o saoshyant Avast-Ereta. Mas, o mito tradicional, como era conhecido no antigo Oriente Próximo antes de Zoroastro, foi transformado em fé apocalíptica. Quando a escatologia zoroastriana foi assimilada e adaptada por não-zoroastrianos, isto ocorreu em escala grandiosa, chegando aos judeus e muçulmanos e sendo a base de sua idéia de “Deus único (Yaweh e Allah)” e de uma doutrina messiânico-milenar da espera de redenção e Paraíso.

3. Poderia nos falar um pouco da relação entre o campo religioso e o campo político baseado nas asserções teóricas de Max Weber?

Para Weber, tendo em vista que a visão do mundo proposta pelas grandes religiões universais é o produto de grupos bem definidos e até de indivíduos que falam em nome de grupos determinados, a análise da estrutura interna da mensagem religiosa não pode ignorar impunemente as funções sociologicamente construídas que ela cumpre: primeiro, em favor dos grupos que a produzem e, em seguida, em favor dos grupos que a consomem.

Max Weber encontra o princípio dos sistemas de interesses religiosos na representação que as classes privilegiadas e as classes “negativamente privilegiadas” fazem de sua posição na estrutura social: entre os primeiros, o sentimento da dignidade prende-se à convicção de sua própria “excelência”, da perfeição de sua conduta de vida, ‘expressão do seu ser qualitativo que é o próprio fundamento de si e que não remete a mais nada’; entre os segundos, funda-se apenas em uma promessa de redenção do sofrimento, e no apelo da providência capaz de dar sentido ao que são a partir do que virão a ser.

As funções sociais tendem sempre a se transformarem em funções políticas na medida em que a função lógica de ordenação do mundo que o mito preenchia de maneira socialmente indiferenciada operando uma diacrisis ao mesmo tempo arbitrária e sistemática no universo das coisas, subordina-se às funções socialmente diferenciadas de diferenciação social e de legitimação das diferenças, ou seja, na medida em que vêm recobrir as divisões sociais em grupos ou classes concorrentes ou antagônicas.

Weber encontra os meios de correlacionar o conteúdo do discurso mítico aos interesses religiosos daqueles que o produzem, que o difundem e que o recebem. Em plano mais profundo, chega a construir o sistema de crenças e práticas religiosas como a expressão mais ou menos transfigurada das estratégias dos diferentes grupos de especialistas em competição pelo monopólio da gestão dos bens de salvação e das diferentes classes interessadas por seus serviços. Weber está de acordo com Marx ao afirmar que a religião cumpre uma função de conservação da ordem social contribuindo, nos termos de sua própria linguagem, para a “legitimação” do poder dos “dominantes” e para a “domesticação” dos “dominados”.

Weber enxerga na gênese histórica de um corpo de agentes especializados o fundamento da autonomia relativa que a tradição marxista confere à religião, sem daí extrair todas as conseqüências e, no mesmo lance, conduz ao núcleo do sistema de produção da ideologia religiosa, ao princípio mais específico da alquimia ideológica pela qual se opera a transfiguração das relações sociais em relações sobrenaturais, inscritos na natureza das coisas e, portanto justificadas.

É a supressão de um culto sob a influência de um poder político ou eclesiástico, em prol de outra religião, que, reduzido os antigos deuses à condição de demônios, deu origem no curso do tempo à oposição entre a religião e a magia

4. Por que a comunidade da Fazenda Porto Seguro e a figura do Meu Rei inserem-se no contexto do messianismo?

Cícero José de Farias – Meu Rei – teria nascido em 13 de setembro de 1882, na Fazenda Riacho da Laje, no município de Altinho, nas proximidades dos municípios de Jurema e Lajedo, no estado de Pernambuco. Teve acesso somente aos rudimentos do “ABC”; nunca teve patrão, sempre se bastando a si próprio, exercendo vários ofícios conforme as vicissitudes da vida: agricultor, garimpeiro, comerciante e pesquisador de “caráter arqueológico”.

Oriundo de uma família católica, Cícero logo se torna um profundo admirador de Padre Cícero, a quem atribui o prodígio de tê-lo salvo da morte e de quem se torna amigo.

 No ano de 1932, Cícero reside na cidade de Arcoverde, em Pernambuco, juntamente com sua mãe e irmãos. Neste ano, mais precisamente no dia 13 de fevereiro, Cícero José de Farias teria tido um a visão de Jesus Cristo, na qual teria recebido o carisma da cura.

A partir dessa aparição e conseqüente entendimento e ordem, a trajetória existencial de Cícero sofre uma guinada radical. Ele sai em peregrinação por inúmeras localidades dos estados da Paraíba (Teixeira, Patos, Campina Grande, etc.), Alagoas, Bahia, Ceará (Juazeiro do Norte) e também outras áreas de Pernambuco (Arcoverde, Buique, Caruaru, Recife, etc.)

Durante vinte anos, após abandonar seus negócios e obter a bênção da mãe, Cícero peregrina por diversos lugares, sem, contudo, arregimentar multidões e sem despertar maiores atenções das autoridades.

Depois destes vinte anos, em 1952, Jesus teria falado com Cícero novamente e lhe dado missão de arregimentar um povo e protegê-lo na chegada do terceiro milênio, pois este seria o povo escolhido para habitar a Jerusalém Celeste.

Desta feita, Cícero sai em nova peregrinação pregando a proximidade do fim dos tempos e angariando adeptos. Volta ao estado de Pernambuco, mais precisamente ao município de Buique e se instala com seus seguidores na Vila do Catimbau.

Em 1976, funda na Serra dos Breus, a Fazenda Porto Seguro, onde a comunidade prospera e seus iniciados esperam, juntamente com o líder, o advento do milênio e a concretização da promessa do Paraíso Terrestre.

Diante de todos estes fatos, fica claro o como e o porquê o movimento que pesquiso inserir-se na esteira dos movimentos messiânico-milenares.

5. Como os ritos e proibições nas terras da comunidade da Fazenda Porto Seguro serviram para garantir a consolidação e a permanência da ordem estabelecida no espaço social, o qual, Meu Rei era líder?

Como se sabe, a ordem social comporta uma serie de observâncias específicas, positivas ou negativas, que concorrem para sua manutenção e estabilidade. Tais observâncias adquirem especial significação quando referem-se às expressões ético-simbólicas da fenomenologia do ato religioso.

As práticas culturais positivas consistem no empreendimento efetivo de um conjunto de ritos claramente delineados. As práticas culturais negativas consistem em interditos explícitos quanto a determinados tipos de procedimentos considerados danosos à comunidade moral e religiosa, cujo objetivo é a separação radical entre os domínios do sagrado e do profano, segundo Durkheim, não constituem prescrições que conduzem o “fiel à realização de prestações efetivas”.

Por este prisma, as regras e proibições existentes na Fazenda Porto Seguro (para mais detalhes vide o artigo) consistiam o centro da ordem social de tal comunidade, regida, única e exclusivamente, por Cícero José de Farias líder centralizador e absoluto deste povo, supostamente, escolhido de Deus para reinarem no Paraíso Terreal.

O que | Caminhos do santo | Diálogos III…peregrinações e cotidianos da fé: um beato, um santo e o homem.

Quando | 22 de Abril de 2010, HOJE, às 19 horas.

Onde | Auditório da Livraria Cultura, Bairro do Recife

Promoção | Museu de Arte Popular – MAP

Quanto | Grátis

Informações | 3232-2803 / 3232-2969